“O incesto simbólico de Pasolini”

| por Anahí Borges |

“Édipo Rei” de Pasolini, filme realizado em 1967, pretende ser fundamentalmente a elaboração de uma lenda, e não a ilustração de um mito. Esta lenda que Pasolini intenta construir em seu filme é a sua própria história, uma autobiografia simbólica. Figurinos e cenários idealizados, constantes referências de uma cultura popular campesina, paisagens da região de Friuli, onde Pasolini passou a sua infância, e depois Bolonha, onde o artista começou a escrever os seus primeiros poemas. “Édipo Rei” evoca simultaneamente o mito (fatalidade) e o complexo freudiano (amor pela mãe) que são criações culturais cronologicamente distintas, mas que Pasolini sintetiza para resolver as suas contradições. Em “Édipo Rei” Pasolini se confronta com a literatura e a psicanálise, e com o seu próprio complexo de Édipo. O amor puro, obsessivo e mítico pela mãe é um dos sentimentos pasolinianos que mais me emocionam. A escolha do artista em ter a mãe interpretando a Virgem Maria em seu filme “O Evangelho Segundo São Matheus” é a metaforização explícita do seu afeto por ela. Um sentimento exposto tantas vezes, em diversas linguagens, mas infinitamente incompreendido pela sociedade italiana de então, catolicamente provinciana. Erotismo sacro e modernidade linguística são marcas deste artista acossado, porque profético, humanista e homossexual. 

Eu comentei sobre o filme para introduzir outra obra em que Pasolini declara seu amor incestuosamente sagrado pela mãe: é o poema “Supplica a mia madre”, presente no livro “Poesia in forma di rosa”, lançado pela primeira vez na Itália em 1964. Abaixo transcrevo o poema (traduzi ao português, mas deixo-o também em italiano, caso algum leitor o deseje ler na língua original). Com esta postagem cumpro a homenagem que há tempos queria dedicar ao sentimento incompreendido deste artista que admiro tanto. 

Súplica a minha mãe, de Pier Paolo Pasolini

É difícil dizer com palavras de filho
aquilo que no coração se parece bem pouco comigo. 

Tu és a única no mundo que sabe daquilo que no meu coração 
existiu sempre, antes de qualquer outro amor.

Por isso devo dizer-te aquilo que é horrível reconhecer:
é na tua graça que nasce a minha angústia.

És insubstituível. Por isso é condenada 
à solidão a vida que me deste.

E não quero ser sozinho. Tenho uma infinita fome
de amor, do amor de corpos sem alma.

Porque a alma está em ti, és tu, mas tu
és minha mãe e o teu amor é a minha escravidão:

Passei a infância escravo deste sentimento
elevado, irremediável, de uma diligência imensa.

Era o único modo de sentir a vida
única tinta, única forma: agora terminou. 

Sobrevivemos: e é a desordem
de uma vida renascida fora da razão

Suplico-te, ah, suplico-te: não queiras morrer.
Estou aqui, sozinho, contigo, em um futuro abril… 

(Tradução: Anahí Borges.)

Supplica a mia madre

É difficile dire com parole di figlio
ciò a cui nel cuore ben poco assomiglio. 

Tu sei la sola al mondo che sa, del mio cuore,
ciò che è stato sempre, prima d’ogni altro amore.

Per questo devo dirti ciò ch’è orrendo conoscere:
è dentro la tua grazia che nasce la mia angoscia.

Sei insostituibile. Per questo è dannata
alla solitudine la vita che mi hai data.

E non voglio esser solo. Ho un’infinita fame
d’amore, dell’amore di corpi senza anima.

Perché l’anima è in te, sei tu, ma tu
sei mia madre e il tuo amore è la mia schiavitù:

ho passatol’infanzia schiavo di questo senso
alto, irrimediabile, di un impegno immenso.

Era l’unico modo per sentire la vita,
l’unica tinta, l’unica forma: ora è finita.

Sopravviviamo: ed è la confusione
di una vita rinata fuori dalla ragione.

Ti supplico, ah, ti supplico: non voler morire.
Sono qui, solo, con te, in un futuro aprile…

* Anahí Borges é roteirista, diretora e produtora. Formada em Audiovisual na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), especializou-se em roteiro no Centro Sperimentale di Cinematografia di Roma. Está a frente de diversos projetos da Aranhas.


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