| por Avani Souza Silva |
Rio, rio, rio… Essa palavra me enche de graça. Lembro-me de um menininho que um dia me disse sobre o fato de alguém rir do riso dele: “Ele riu do meu rio”. As crianças são mesmo grandes inventores da língua. Um rio é uma risada.
Um rio é uma coragem. Lembro-me de um ditado africano: “Se você tem que atravessar um rio, coloque logo os pés na água.”
Um rio é um susto. Lembro-me das enchentes da minha infância em que o rio se espreguiçava num grande esparramo e virava mar. Ai, São Paulo.
Um rio é um medo: Tanta gente se foi para o nunca mais, abraçadas pelos rios daqui, de acolá, de acolalá.
Um rio é uma esperança: é o rio raso, de pedrinhas, de águas cristalinas, dando pequenos goles. É o rio silencioso. O largo. O fundo. O escuro. O rio matando a sede de bichos e de homens, regando plantações. Ô, meu São Francisco. Velho Chico para meu pai.
Um rio também enche de riso suas margens. São as aventuras desastradas de um tal Lobo faminto na Guiné-Bissau e suas travessias perigosas em rios caudalosas, no dorso de uma hipopótoma, a quem, mal-agradecido, dá uma mordida arrancando-lhe um pedaço da mama. E isso não vai ficar impune. Lobo parecido, se não o mesmo, um parente, agora cabo-verdiano, vive aventuras parecidas na travessia de mares. Lobo guloso, cheio de artimanhas.
O rio, o rio, o rio….
Riobaldo, o protagonista do romance Grande Sertão: Veredas traz o rio em seu nome, no espaço, na vida, em seu sofrer e em seu amar. E pensa tanto quanto um rio tanto anda: “A gente quer passar um rio a nado, e passa: mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?”
O rio está em nossas vidas, dentro de nós, correndo em nossas veias. Rio Amazonas, Rio São Francisco. Rio Doce, cadê você? A tristeza do rio Tietê… A beleza quase morta do Rio Pinheiros. Há dez anos havia garças solitárias, e até um jacaré apareceu um dia. E as capivaras em suas margens? Capivara também nasceu para pensar, não é Riobaldo?
Olhando o Tietê, é quase impossível não pensar no Sena e em sua escandalosa beleza, em seu movimento discreto, o leito profundo, a cor verde intensa. Tem até piscinas em seu cais, no Parc de La Villette, verdadeiras praias. Praias para o povo de lá sem praias. Paris Plage.
Nas margens do Sena tem bares, restaurantes, movimento, eventos. No leito, barcos de turismo, como os do Piracicaba e do Guaíba que nem é rio, é lago. Aqui, temos imensos e largos rios. E o Sena tão limpo e comportado. Em seu cais, vi uma modelo sendo fotografada embaixo da ponte Alexandre III, apoiada em sua estrutura de ferro verde. Ui, pensei. E fomos andando, minha amiga Carmen e eu.
No cais do Sena, barcos atracados também são casas, Peniches: moradias com jardins, vasos de plantas, gramado, cadeiras de praia, mesinhas, brinquedos de crianças. Cortinas.
Nosso rio Tietê ainda pode ser salvo, ser cena, ser um Sena. Há quantos anos estão tentando matá-lo dando veneno? Fingem curá-lo roubando o remédio. Que cena… Ninguém esquece um rio. O rio fala com a gente. Murmura. Grita de longe e de perto. Grita dentro de nós. O rio, ele próprio, é um evento. Um grande evento. O rio, o rio, o rio…
Avani Souza Silvaé graduada, mestre e doutora em Letras pela USP. Especialista em Língua Portuguesa pela PUC-SP. Pesquisadora de literaturas e culturas dos países africanos de Língua Portuguesa e Timor Leste.
Belo texto, que recupera lembranças agradáveis e provoca muita saudade, principalmente em quem teve um rio em sua vida.