| por Anahí Borges |
A Luna nasceu. Minha primeira sobrinha. Descobri que ser tia é como ser uma mãe transgressiva. Ou seja, não é isenta de responsabilidades, mas é livre o suficiente para criar cumplicidades secretas com a criança. Ela adora chocolate, que chama de bolo. Adora também desenho animado na televisão. Mas o que mais gosta mesmo é de livros.
Luna vai completar três anos e basta ver qualquer livro em minha mesa, pega-o e me pede para eu lhe contar a história. Nem adianta ser na hora de dormir, porque as histórias as despertam e a fazem viajar por mundos quiméricos. Luna costuma completar as histórias que lhe conto – outra cumplicidade nossa. Cria novos personagens, inventa situações, faz perguntas para continuarmos deslizando pela imaginação. Ela é muito parecida comigo quando eu era criança. Temos o mesmo olhar, personalidades parecidas, toda a nossa família confirma isso. Amigos, também. Quando me vejo nela, sinto meu cérebro entrar em curto-circuito. Eu me volto pra dentro de mim mesma. O encontro com a minha criança interior.
Há cinco anos eu criei uma personagem infantil: a menina Petrolina, Pety para os amigos. Negra, cabelos black power, usa vestidinho colorido, botas galochas e faz poções mágicas. Realizei três filmes com essa personagem: dois são live action e o terceiro é uma animação. Demorei para perceber que a Pety é meu alterego infantil. Só me dei conta deste fato durante as exibições das obras nos cinemas, uma vez que os espectadores perguntavam se a Pety era minha filha, tamanha a semelhança entre nós. A Pety também sou eu. A minha criança interior.
A criança interior é um arquétipo. A parte mais pura que nos abita. A essência que todos nós somos. Olhar, acolher e cuidar da nossa criança interior nos faz encontrar a fonte de amor dentro de nós, o amor incondicional; Amar a nós próprios, essa criação que somos, expressão única no Universo. A simplicidade desse encontro reside no ato de se colocar de peito aberto para sentir o contato com essa parte mais pura do nosso ser. Não é algo racional, não envolve o ego, mas o agora, o estado de presença.
Neste sentido, a Luna e a Pety são espelhos para mim. Ambas me conduzem ao meu melhor, despertam em mim sentimentos e sensações potentes e transformadores. Conviver com elas é um ato criativo e sagrado do qual sou muito grata, uma vez que as dinâmicas sociais, as exigências que nos são impostas em todas as áreas de nossas vidas e o modus operandi da sociedade tentam nos aniquilar enquanto seres essenciais, seres que amam, sentem e sonham. A beleza da pureza de uma criança reside dentro de nós.
Anahí Borgesé roteirista, diretora e produtora. Formada em Audiovisual na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), especializou-se em roteiro no Centro Sperimentale di Cinematografia di Roma. Está a frente de diversos projetos da Aranhas.
por Anahí Borges